O Engraxate

Por: Orozimbo de Assis (pseudônimo de Egydio

 para participar do concurso de contos)

 

(Primeira lauda- 1/10)

Capítulo I

O  E N G R A X A T E

Orozimbo de Assis (Pseudônimo de Egydio)

 

Eu sei de  uma história triste

Triste até de se contá

É a história de um menino

Que vivia de engraxá

De manhã era engraxate

De tarde ele ia estudá

Fizesse frio ou calor

Estava sempre a trabaiá

 

Seu padrasto era seu tio

etc. etc”.

  

Não desliguei o rádio. Embora não gostasse de moda de viola, esta sempre me sensibilizava. Eu conhecia a história sobre a qual ela versava. 

Não deveria contar esta história, mas vou fazê-lo porque tenho um bom pretexto: é verdadeira.

Eram sete e meia da manhã de uma segunda-feira. O mês? Junho. O ano? Não importa, mas digo: 1.962. A localidade? Esta importa: Assis.

Fazia frio de queimar as orelhas.

-Moço, quer engraxar? perguntou Gilson ao transeunte que passava apressado, fugindo ao frio.

-Não. Estão limpos.

- Vamos passar o pano.

-Não. Estou com pressa. Respondeu o passante demonstrando irritação pela insistência.

Havia outro possível freguês na esquina da Praça Arlindo Luz com a Av. Rui Barbosa, em frente da Estação da Sorocabana.

-Moço, quer engraxar?

- Não. Estou esperando o trem e ele está para chegar daqui a pouco.

-Dá tempo. Vamos engraxar, vá: convidou Gílson quase apelando.

-Bem, passa o pano. O freguês aquiescera ao convite, levado mais pelo coração do que pela necessidade. .

Gílson tremia de trio. Seus pés, descalços, estavam gelados.

As mãos duras, o que quase lhe impedia de movimentar os dedos.

Só com sacrifício consegue abrir a portinhola da caixa e tirar seus apetrechos.

-Você está com frio! Hein, garoto? disse o freguês em tom de brincadeira para amenizar a cena pungente.

-Tá um pouco. Responde Gílson, articulando com dificuldade as palavras por causa do frio.

-Suas mãos estão duras. Você não consegue segurar a escova. Por que você não deixa para começar seu serviço mais tarde?
- Eu devia ter mijado na mão. O Senhor sabe que esquenta?.

II

Gílson iniciara na sua profissão fazia seis anos. Seus tios o haviam colocado a estudar no Grupo Escolar.
- Criança tem que ir à escola. No próximo ano, vai”. Dizia sempre seu Joaquim, tio de Gílson por parte de mãe.

Mas, se os vizinhos não indagassem sempre: “quando vai mandar o menino à escola, seu Joaquim?", o próximo ano jamais chegaria.

Com doze anos, Gílson ainda estava no primeiro ano.

Os colegas apelidaram-no de "papai da classe. É certo que o primeiro que lhe deu o nome levou um pé-de-ouvido, fazendo-o pôr a boca no mundo. Não adiantou nada. O apelido pegou mesmo.

Além disso, o pé-de-ouvido valeu-lhe admoestação do diretor e uma surra de vara de marmelo.
-Criança não deve brigar à toa. Onde já se viu com apenas dois dias de escola, já andares a brigar. Isto é para aprenderes.

Dissera o tio, resfolegando e sendo arrastado pela mulher, enquanto Gílson engolia soluços "porque se chorares, apanhas mais".

Seu Joaquim era português. Viera de uma aldeia atrasada de Portugal. Talvez, a mais atrasada de todas. 
Mas voltemos ao assunto. Gilson tremia de frio e passava a escova de um lado para outro. Contudo, estava feliz. 
Descobrira uma forma de ludibriar o "portuga", como o chamavam seus colegas pejorativamente. 

Todas as vezes que chegava à sua casa, passava por uma humilhante revista.
-"Meu pai sempre dizia que é necessário vigiar o cão, senão ele se torna ladrão. Passa pra cá o dinheiro que ganhaste com a caixa que te dei, pois quem custeia teus estudos sou eu.

Além disso, criança tem que aprender a trabalhar cedo. A vida não é brincadeira. 
Seu Joaquim rezava esta ladainha diariamente, como que para justificar seu gesto. E revirava todos os bolsos do menino, arrancando qualquer mísero vintém que achasse. A mulher abrandava:
-Ora, Joaquim, o menino apesar de tudo é trabalhador. Não precisa tratá-lo assim.
-Criança tem que obedecer. Amanhã cresce desonesto e dirão que a gente nem o educou.
Mas Gílson descobrira uma forma para enganar o tio.

E já fazia duas semanas. O esconderijo era o tronco oco de uma árvore, que ficava próxima à entrada da casa.

Deixava ali a quantia para o cinema. Não podia perder o seriado.
Flash Gordon estava a caminho do planeta Ming, quando sua nave espacial explodiu. Como escapará?
A esta pergunta Gílson não tinha resposta. Não podia sequer lembrar que se emocionava. O tio já andava desconfiado. 
O menino saía todos os domingos brincar e voltava contando os filmes de mocinho com nomes atrapalhados.
-Onde arranjas dinheiro para o cinema, menino? Não te dou dinheiro para gastares em coisa, que não é preciso.

Respondia sempre que alguém lhe havia pagado a entrada. Os fregueses pagavam.

Bem que poderia engolir o que tinha visto no cinema, sem comentar, mas dava uma vontade de falar...
Contavam os engraxates, seus colegas, que o Capitão Márvel era melhor ainda.
-Você não viu nada! O Capitão Márvel é que era bom. Dizia “sasham” e pronto; tinha uma força terrível e já começava a voar.

No gibi não é tão legal como no cinema.
Quando passasse o Capitão Márvel não perderia, de jeito nenhum. Ia até guardar mais dinheiro no tronco.

Precisava fazer economia, porque seu tio era capaz de cismar e não deixá-lo engraxar mais. A vizinhança vivia criticando seu Joaquim, dizendo que ele explorava o menino. E se ele não me deixar mais engraxar?
Nem queria pensar em tal coisa.

Seus colegas gostavam de futebol, não assistiam, porque a entrada era muito cara. Gílson tinha raiva de ir ao campo da Ferroviária e não poder entrar. Só conseguia entrar de graça no finalzinho do jogo.
Um dia pulou a cerca. O guarda percebeu e ele saiu a pescoção do campo.

O pior foi a gozação da molecada.
Logrou fazer amizade com um jogador da Ferroviária e resolveu o problema. Entrava todo vaidoso ao lado do jogador e olhava com ar superior para os outros moleques.

A primeira vez ainda conseguiu assistir ao jogo até o final. Depois, entrava, mas saía logo. Dava preguiça de assistir.
Os outros garotos sonhavam em entrar, mas não tiveram a mesma sorte.
Futebol não ia para ele.

Mas o seriado era diferente. Já não se contentava somente com o cinema: lia todos os gibis que lhe caíssem nas mãos. O pior é que as despesas aumentavam.

Quando somente assistia ao seriado uma vez por semana ainda dava, mas agora tinha que comprar gibi, pois os colegas já andavam cansados do seu “já leu? Então, me empresta". Não havia dinheiro que chegasse.

O tio advertia:
-Andas a gastar dinheiro à toa. Não precisas de nada, tens tudo aqui em casa. Tudo aumenta e cada dia trazes menos dinheiro prá casa. Se souber que andas a enganar-me, levas uma surra de três dias de salmoura.

Tua falecida mãe (que Deus a tenha em bom lugar) me responsabilizou a tua educação, mas tu és uma peste. Hei de fazer de ti um homem honesto, como meu pai (que Deus o tenha...) me fez a mim, ainda que tenha de acabar com todas as varas de marmelo do mundo.
Gílson, atendendo ao adágio "quem deve teme", tremia e empalidecia, diante dessas ameaças. Apanhar de vara de marmelo nunca foi coisa agradável.
Seu tio havia plantado um pé no fundo do qu1ntal, donde, pelo menos uma vez por semana, cortava uma para surrar o menino.
Gílson resolveu acabar com o pé de marmelo. Levantou-se de madrugada, juntando palha, gravetos e lenha ao redor do pé de marmelo, ateou fogo, voltando correndo para a cama.

Foi um Deu nos acuda. O fogo, inicialmente, acanhado, foi crescendo e agigantou-se em labaredas.

Parece que encarnava a ira de Gílson contra o pé de marmelo. Ameaçava a casa do vizinho e já dominava a cerca.

A vizinhança acorda e começa o corre-corre para apagar o fogo. Ninguém sabia a origem.

O vizinho, que já tivera umas rusgas com seu Joaquim por causa daquela cerca, não se conformou e foi ao delegado.
O delegado não gostou da explicação de “não sabia" de seu Joaquim e advertiu-o seriamente, fazendo-lhe uma porção de ameaças: surra de borracha, cadeia em comer, etc.
Gílson seria capaz de por fogo na cidade inteira, desde que queimasse o pé de marmelo.

Mas, não adiantou nada. O pé de marmelo se refez e parece que ficou mais viçoso ainda.

E foi com uma vara do mesmo pé de marmelo, que Gílson levou a maior e também a última surra de sua vida.
Quando o tio descobriu que fora ele o incendiário. Sentindo o braço dolorido de tanto fazer subir e descer a vara de marmelo, que zunia no espaço, seu Joaquim vociferava, fungando de raiva e também pelo esforço, que despendia.
-Ah! Se não fosse pela promessa à irmã falecida, eu me livraria deste menino! Envergonhar-me diante dos vizinhos e do seu delegado. Uma surra só não basta!

A surra, desta vez, foi mesmo de três dias de cama. E de precisar até chamar o médico. O médico, impressionado com o estado do menino, ameaçou o seu Joaquim de denunciá-lo ao Juiz de Direito ou ao Delegado.
Felizmente, para Gílson, tudo começou na segunda-feira e, quando chegou o domingo, Gílson pode retirar o dinheiro do esconderijo e ir ver a forma, pela qual Flash Gordon se livrou da explosão da nave espacial.

 

Capítulo III

-Você viu! Eu falei prá você que Flash Gordon tinha saído antes da explosão.
-Sim, mas você falou que ele pulou de pára-quedas e ele escapou é com um foguete pequeno. 
Surge um possível freguês. Gilson e Jaime gritam:
-Quer engraxar moço?
-Quero.
-Engraxa comigo. Diz Gilson.
-Engraxa comigo. Fui eu que vi primeiro. Grita Jaime.
-Mas fui eu que falei primeiro. Argumenta Gilson.
-Não precisam brigar. Engraxo com os dois. Cada um engraxa um pé e ganha quinze cruzeiros.
O freguês, viajante de drogas, que ficaria conhecido de Gilson, como seu Paulo, observava os dois engraxates com um olhar paternal. Dir-se-ia que desejava acariciar os dois. Seu Paulo também fora engraxate quando criança.
Ao terminarem de engraxar, seu Paulo solicitou aos dois que o acompanhassem ao apartamento numero 10.020 do Hotel Vieira Dias.
-Tenho mais dois pares para engraxar. Um para cada um.
Jaime terminara de engraxar rapidamente e foi entregar os sapatos ao freguês. Gilson não. 
Aceitara convite para brincar de pega-pega com os colegas.
-Você não me pega! Você não me pega! Gritava e olhava atentamente para os competidores; ria que dava gosto.

Sente, repentinamente, u' a mão, que o segura pela gola da camisa, apertando seu pescoço e fazendo aumentar o rasgo de sua camisa bem no meio das costas, quase a divide em duas. 
O tapa desfechado pelo agressor atinge-lhe a orelha direita, que fica ardendo e zumbindo.
-Já disse milhares de vezes para que não brinquem aqui no jardim.

Me pisam na grama e me arrebentam as flores! Era o guarda, encarregado de cuidar do jardim.
-Bobão! O velho não pode nem andar e te pegou. Que tapa na orelha! Gozavam seus colegas.

Gílson disse uns palavrões, fez caretas ao velho e correu atrás de seus colegas para ver se recuperava a moral abatida.
Mas o jeito mesmo era, com a orelha ardendo e tudo, engraxar os sapatos de seu Paulo.

Capítulo IV

-Aqui estão os sapatos.
-Entra, garoto. Senta aí. Ordenou amavelmente seu Paulo.
Gílson entrou no apartamento e sentiu uma sensação de importância.
Gostava da ser chamado de garoto. Depois de fazer algumas perguntas para puxar prosa, o nome, se estuda, etc. seu Paulo indagou:
-Você tem pai?
- Não.
-E mãe? 
-Minha mãe morreu e me deixou sob a responsabilidade de meu tio. Disse Gl1son repetindo as mesmas palavras que ouvia de seu tio, recordando-lhe sempre a origem.

Enquanto conversavam. Gílson examinava uma pasta, que estava sobre a mesa.
-Gostou da pasta?
-Sim. É boa para levar cadernos e livros. Respondeu Gílson, lembrando-se de seus colegas de grupo escolar, que possuíam pastas de couro. A sua era de pano.
-Se é para isso que você quer, pode levá-la para você.
Gílson transformou-se de alegria: há quanto tempo não recebia presente. Nem se recordava. Num natal, sua tia envergonhada dos vizinhos por não dar nada ao menino, comprou-lhe uma bola de borracha. Foi um inferno.
Seu Joaquim fez um esparramo.
-Onde já se viu gastar dinheiro à toa. Tu pegaste a mania desta gente daqui de jogar dinheiro fora: Se comprasses roupa ou outra coisa útil, estaria certo.

Prá que o raio do menino quer bola? Prá quebrar vidraças?
Gílson nem esperou o elevador. Desceu pelas escadas, com a pasta na mão, olhando-a cada passo que dava.
O tio no dia seguinte veio certificar-se se realmente era presente.
-O senhor sabe, a gente precisa acompanhar os passos das crianças.

As crianças de hoje são muito levadas. Comentou seu Joaquim ao obter a verdade.
Gílson agora tinha adoração pelo seu Paulo.

Diariamente, ia buscar seus sapatos para engraxar e não queria cobrar.

Mas seu Paulo pagava-lhe e ainda dava uma gorjeta gorda.

Alem disso, dava-lhe amostras grátis de remédio: vitaminas com boa, dose de açúcar.

Às vezes, se encontravam no jardim ou na Avenida, seu Paulo perguntava:
-Como vai, Gílson? Colocava a mão sobre suas costas e andavam juntos alguns passos.
Um dia Gílson dirige-se normalmente à porta do apartamento de seu Paulo e ela está trancada.

O porteiro informa que seu Paulo tinha viajado e deixara alguns remédios: "mandou entregar a você”.

Gílson apanhou os remédios e saiu cabisbaixo. Sentiu um vazio no peito e uma sensação de abandono.
-Vamos brincar de pega-pega, Gílson. O velho não veio trabalhar hoje. Convidou entusiasmado Jaime.
-Não velo trabalhar!

Responde Gílson como que voltando à rea1idade e pondo os remedias dentro da caixa de engraxar.

Saiu correndo para o jardim. No peito, a sensação estranha ainda permanecia. Porém, no entusiasmo do pega-pega, tudo desapareceu.

E vibravam absortos em alegria: você não me pega! Você não me pega!
 

Capítulo V

Era sexta-feira. Depois de amanhã, domingo, é dia do seriado.

No ultimo episódio, os habitantes do planeta Mongo haviam prendido Dale, a mocinha, e estavam prestes a jogá-la dentro de um tacho de óleo fervente.
Flash Gordon se encontrava preso numa caverna.

Como se salvarão?
A simples hipótese de não poder assistir ao episódio dava calafrios em Gílson.

Hoje ele guardaria dinheiro para garantir a entrada de domingo e também para comprar amendoim e pipoca.
 

Dirigia-se ao esconderijo, pensando na importância que guardaria: quarenta, cinqüenta ou sessenta cruzeiros. Decidiu-se por cinqüenta. 

-Ah! Então é aí que escondes o dinheiro que me furtas? Cão sem vergonha. Hoje eu te mato. Era o tio.

Ficara de espreita durante a semana inteira. Bem que desconfiara. Ora vejam só; esconder dinheiro do próprio tio.
Quem visse o rosto de Gílson, no momento em que ouviu o grito de seu Joaquim, teria impressão de que seus olhos iriam saltar das órbitas.

Correu desesperadamente para casa. Entra voando e jacta-se em baixo da cama. Lembrava-se da ultima surra. O terror disparara-lhe o coração.
-Desta vez, mato este menino! Disse o tio ao entrar em casa, trazendo na mão vara de marmelo.
-Estás louco homem? Não te lembras do que te falou o doutore? Denuncia-te ao Juiz e ao Delegado! Advertiu a mulher.

]-Pode denunciar pro diabo que os carregue. Respondeu seu Joaquim, porem com outro tom de voz e já com o desejo de surrar o sobrinho bastante abalado.

Com o Delegado não queria conversa. Naquele dia Gílson não apanhou.
Não conseguiu entender a causa de não ter apanhado.

Talvez Seu tio estivesse pensando num castigo pior ainda.

Conhecia seu tio por experiência e também já sabia entender, pela reação de seu Joaquim, quando fazia coisa de apanhar bastante.

E o ter escondido dinheiro Gílson tinha convicção de que era imperdoável.

Capítulo VI

No dia seguinte, Gílson estava deveras triste. Nunca se viu o menino tão triste. Sua tristeza era contagiante. Ela procedia nem tanto da surra prometida para hoje, mas muito mais de não poder assistir ao seriado de amanhã. Não iria saber a resposta para “como se salvarão Flash Gordon e Dale".
Agora entendia claramente porque não apanhara ontem. Seu tio deixara para hoje. Seu Joaquim advertira de que hoje Gilson deveria trazer para casa, pelo menos, a importância de quinhentos cruzeiros.
-Quinhentos cruzeiros! Ouviste? Senão tu hoje morres de tanto apanhar. Gilson nunca ganhara tal importância, nem somando as gorjetas.
-Além disso, não sairás brincar este fim de semana. Ficarás de castigo para te emendares.

Seu Joaquim exagerou na sua ameaça, no desejo de obter todo o dinheiro que Gílson lograsse ganhar.
Gílson nunca sentiu tanta saudade de sua mãe como naquele dia.
Era tão carinhosa, mas morreu fazia muito tempo.
No sábado tinha muito serviço, mas não alcançaria de jeito nenhum a quota estipulada. As horas corriam. Já eram seis horas da tarde.

O sol fazia as sombras dos meninos ficarem compridos e magros.

Lembrava o pernalta, que andava de perna-de-pau, com uma tabuleta, nas costas fazendo propaganda do circo. Gostava de circo.

Fora algumas vezes ao circo. Pulara o muro, certa vez, e o melhor foi que o guarda não o pegou. Mas pegou o Jaime.

Outras vezes, pagara entrada com o dinheiro, que escondia no tronco e agora não podia esconder mais.
A noite descia. Eram seis e meia da tarde. O dia passara depressa.

Ganhara trezentos e vinte cruzeiros. Faltavam cento e oitenta cruzeiros.

Pediu emprestado no 'bar. Negaram. Contou a história.

-Deixa de onda moleque. Você já ganhou bastante hoje.

Ah! Se seu Paulo estivesse em Assis. Quem sabe?

E num átimo já estava dentro do elevador. Tremulamente, bate na porta do apartamento 10.020.

Alguém se aproxima. Parecem os passos de seu Paulo.
-Seu Paulo! Exclama Gílson.
-Que foi, garoto? Que é que você quer? Não era seu Paulo. O homem tinha estatura mediana. Corado, forte e afável.
-Me desculpe. Pensei que fosse seu Paulo. Balbuciou Gílson.
-Você é engraxate?
-Sou.
-Entre; tenho um par de sapatos para, engraxar.
-Um par só não resolve. Disse Gílson, entrando no apartamento, enquanto o homem fechava a porta em seguida.
-Eu precisava de cento e oitenta cruzeiros. Continuou Gílson.
-Cento e oitenta cruzeiros para engraxar um par de sapatos. Você não acha que é muito?

Perguntou o homem, passando a mão carinhosamente na cabeça de Gílson, o que o fez recordar seu Paulo.

O corado, forte e afável olhava o menino com certa voluptuosidade. Não era normal.

Era um desequilibrado psico-social. Um tarado ou monstro, como seria tratado pelas manchetes dos jornais.

Porém, visto noutra oportun1ndade, dir-se-ia um "gentleman".
-Não. Eu não cobro cento e oitenta cruzeiros para engraxar um par de sapatos.

É que... Gílson contou a história da surra prometida pelo tio se não conseguisse quinhentos cruzeiros.

Preferiu omitir a sua principal aflição: o seriado do domingo: como se salvarão Flash Gordon e Dale?

-Eu ficarei seu amigo. Eu juro. Engraxarei seus sapatos todos os dias e não cobrarei nada! Respondeu inocentemente Gílson, vendo nascer uma esperança.
-Você precisa provar antes que é meu amigo para eu ter certeza, de que você é realmente meu amigo. Quero que você me permita. .Propõe, ou melhor, impõe o monstro.
-O senhor está brincando. Diz Gílson, ficando desorientado em virtude da inesperada proposta, procurando esquivar-se da mão que o acariciava.

 Mas percebeu que o homem não brincava e não queria destruir a sua única esperança. Quer arrumar uma desculpa.
-Eu... Eu não posso; e se meus colegas souberem? Eles vão gozar de mim. Argumenta Gílson numa última cartada.
-Ora, eu não vou contar. Além disso, todos eles fazem isso. Mentiu o tarado.
Enquanto isso, seu Joaquim, vendo que o menino não vinha para casa e, admoestado pela mulher, vem buscá-lo.

Fora muito rude com a criança. Afinal era órfão. Seu sobrinho.

Mas para educar é preciso ser duro, senão criança cresce desonesta.

Procura-o no jardim. Pergunta na banca de jornal; não viram. Indaga no bar. Informam que entrou no Hotel Vieira Dias.

O ascensorista lhe complementa a informação. Bate no apartamento numero 10.020. 
-Quem é? Responde perguntando uma voz de homem grossa e forte, externando apreensão.

Gílson sentia dores, parecia estar em estado febril: a cabeça girava, a realidade não era palpável.

Tudo era nevoa. Seu algoz ajudara-o a vestir a roupa e foi abrir a porta.
-Está aí meu sobrinho? Disseram-me que estava aqui. Indagou seu Joaquim, temendo ter errado a porta.
-Ele... E1e está. Veio buscar meus sapatos para engraxar. Resmungou o monstro visivelmente apreensivo.

Seu Joaquim vê o menino e exclama sem atinar com o que se passa.
-Estás aí, Gílson! Gílson ao ouvir a voz do tio, sentiu um calafrio. Tudo lhe parecia pesadelo.

A voz do tio sempre o colocou em estado de aflição. Quer fugir. Sobe numa cadeira junto à janela e da cadeira à janela.
-Gilson, que fazes? Grita seu Joaquim percebendo o perigo. Seu grito serviu de impulso à queda do menino.

O corpo desce de encontro ao solo. Ouvem-se gritos.

Das janelas do prédio, viam-se pessoas dirigirem-se apressadas para perto corpo de Gílson.

Mais abaixo, na Avenida Rui Barbosa, onde se discutem os sérios problemas internacionais e se acordam sobre a melhor fórmula para a política cambiária do Brasil, outro engraxate, perguntava aos transeuntes:

-Quer engraxar, moço? 
-Sobre o suicídio espontâneo, as rádios e os jornais locais descreveram minuciosamente até onde escorreu o sangue do menino, em centímetro e até milímetro.
O correspondente da Última Hora em Assis obteve a sonhada manchete na primeira página de seu jornal, com a fotografia de Gílson, esvaindo sangue pela boca.

E eu fui além: escrevi este conto.

 

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Egydio Coelho da Silva  (foto 1.942 - com 8 anos)

Uma explicação desnecessária

Este conto, escrevi-o, a mão num caderno em uma só noite.

Foi um "brainstorm" (chuva de ideias), semelhante ao que conta Mário de Andrade sobre a criação de seu poema "Pauliceia Desvairada".

Escreveu-o à mão, para mais tarde, passar a limpo numa máquina de escrever.

Foi o que fiz neste conto.

O pano de fundo é  o conceito de utilizar castigos corporais na educação das crianças.
O tema, infelizmente, é hoje até mais atual.

59 anos depois de ter eu escrito este conto, o jornal "O Estado de S. Paulo", em 25 de abril de 2021, publica notícia da morte do menino Henry, de quatro anos de idade, espancado e torturado pelo padrasto e da menina Ketelen Vitória, de seis anos, espancada até a morte pela mãe e madrasta.
Os acusados estão presos e devem ir a julgamento.
É certo que estes casos são exceção.
A regra, adotada por muitos pais, é de palmadas no "bum bum", com o objetivo de educar.
Com sentimento de que "palmada de amor não doe".
Quando o castigo se faz com irritação pela desobediência ou alguma traquinagem da criança, não só doe, como também machuca e até deseduca.
Evidente que há outras formas mais corretas de educar.
Mas  isto demanda mais tempo e muita paciência.
E a maioria dos pais não tem tempo ou não se organiza para ter.
E paciência para lidar com criança, poucos têm.

Meus pais usavam sim castigos corporais para educar seus oito filhos.

Mas eram cometidos.
Minha mãe, quando havia desobediência ou traquinagem, costumava dar uns tapinhas na mão.

Nada que machucasse.
Quando a travessura era muita, dizia: "quando seu pai chegar do serviço" era lhe dará umas boas cintadas.
Na maior parte das vezes, fingia que tinha esquecido e não contava nada.
Mas, quando achava que algum de meus irmãos merecia corretivo, contava e meu pai. Ele fazia um enorme sermão, no máximo dava uma cintada de leve.

E dizia: "da próxima vez, você vai levar uma surra de verdade".
E minha mãe falava baixinho:

"O João faz muito barulho, mas castiga pouco".
Eu na verdade, sempre fui um privilegiado, porque era o preferido de minha avó: quando minha mãe vinha para me dar alguma palmada, eu corria para perto de minha avó e ela me protegia.

Na verdade, na época, este era o costume e aceito por todos.
Quando um dos filhos era levado para escola, meu pai pedia à professora que o ajudasse a educar.

E dizia: "se precisar, pode lhe dar uns tapas. Se vier reclamar em casa, vai apanhar dobrado".
Quando adulto, cheguei a censurar meu pai pelo fato de utilizar castigo corporal na educação dos filhos.
Ele respondeu que conseguiu educar todos os seus oito filhos corretamente.

Nenhum seguiu caminho errado, são trabalhadores e honestos.

E ainda acrescentou: "Se eu tivesse sido mais rigoroso, você não me faria essa afirmação desrespeitosa".
Mas mesmos os professores entendiam que o caminho para educar, passava por algum castigo corporal.
Minha professora, ensinando o "beabá", quando aluno desviava a atenção da lousa, costumava bater com a ponta do pesado apontador na cabeça do aluno.
Até hoje me lembro que a dor era bem forte.
No início da década de 1960, frequentei, no Mackenzie, um curso para professores do segundo grau comercial.
Lembro-me de ouvir em aula sobre psicologia de adolescente.
O professor explicou a forte diferença da psicologia da criança e da do adolescente.
Disse que até os 12 ou 13 anos, a criança entende como certo ou errado apenas o que seus pais acham.

Na adolescência começa a agir como adulto e já tem conceito próprio do que é certo ou errado.
A partir daí, os pais precisam ter muito diálogo, para lhe modificar o pensamento. 

Diferente de quando era criança. 
Os pais para educar apenas diziam o que ela poderia fazer ou não.

Se não obedecesse, um tapa na mão ou no bum bum resolvia.

Na educação do meu filho, tive confirmação, de triste memória, que para a criança o certo e errado, são os que os pais dizem.
Meu filho tinha problema de bronquite e, por isso, eu proibia de brincar com água, que é o que as crianças mais gostam.

E quando o pegava brincando com água da torneira, lhe dava uns tapinhas na mão.
Aos sete anos, ele me procurou e estendeu a mãozinha e pediu que eu batesse nela.
Perguntei: 

por que meu filho?
Ele respondeu:

é que eu estava brincando com água da torneira.
Meus olhos se encheram de lágrimas.

Nunca mais o castiguei por isso.

No início de sua adolescência, certa vez, me disse:

"eu era tonto e concordava com todas as proibições que você fazia".
É que nesta idade, ele já tinha ideias próprias e se lembrava de ter aceitado as determinações, quando ainda criança, sobre assunto, que, agora adulto, achava erradas. 
Não sei se o professor estava certo, ao dizer que, para educar criança, uns tapinhas são necessários para indicar procedimentos corretos.

Não é minha área, por isso não sei se existe outra forma de educar as crianças.
Espero que exista.