O Engraxate Por: Orozimbo de Assis (pseudônimo de Egydio para participar do concurso de contos)
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(Primeira lauda- 1/10) Capítulo I
O
E N G R A X A T E Orozimbo de Assis (Pseudônimo de Egydio) Eu sei de uma história triste Triste até de se contá É a história de um menino Que vivia de engraxá De manhã era engraxate De tarde ele ia estudá Fizesse frio ou calor Estava sempre a trabaiá Seu padrasto era seu tio etc. etc”. Não desliguei o rádio. Embora não gostasse de moda de viola, esta sempre me sensibilizava. Eu conhecia a história sobre a qual ela versava. Não deveria contar esta história, mas vou fazê-lo porque tenho um bom pretexto: é verdadeira. Eram sete e meia da manhã de uma segunda-feira. O mês? Junho. O ano? Não importa, mas digo: 1.962. A localidade? Esta importa: Assis. Fazia frio de queimar as orelhas. -Moço, quer engraxar? perguntou Gilson ao transeunte que passava apressado, fugindo ao frio. -Não. Estão limpos. - Vamos passar o pano. -Não. Estou com pressa. Respondeu o passante demonstrando irritação pela insistência. Havia outro possível freguês na esquina da Praça Arlindo Luz com a Av. Rui Barbosa, em frente da Estação da Sorocabana. -Moço, quer engraxar? - Não. Estou esperando o trem e ele está para chegar daqui a pouco. -Dá tempo. Vamos engraxar, vá: convidou Gílson quase apelando. -Bem, passa o pano. O freguês aquiescera ao convite, levado mais pelo coração do que pela necessidade. . Gílson tremia de trio. Seus pés, descalços, estavam gelados. As mãos duras, o que quase lhe impedia de movimentar os dedos. Só com sacrifício consegue abrir a portinhola da caixa e tirar seus apetrechos. -Você está com frio! Hein, garoto? disse o freguês em tom de brincadeira para amenizar a cena pungente. -Tá um pouco. Responde Gílson, articulando com dificuldade as palavras por causa do frio.
-Suas mãos estão duras. Você não consegue segurar a escova. Por que você
não deixa para começar seu serviço mais tarde? II
Gílson iniciara na sua profissão fazia seis anos. Seus tios o haviam
colocado a estudar no Grupo Escolar. Mas, se os vizinhos não indagassem sempre: “quando vai mandar o menino à escola, seu Joaquim?", o próximo ano jamais chegaria. Com doze anos, Gílson ainda estava no primeiro ano. Os colegas apelidaram-no de "papai da classe. É certo que o primeiro que lhe deu o nome levou um pé-de-ouvido, fazendo-o pôr a boca no mundo. Não adiantou nada. O apelido pegou mesmo.
Além
disso, o pé-de-ouvido valeu-lhe admoestação do diretor e uma surra de
vara de marmelo. Dissera o tio, resfolegando e sendo arrastado pela mulher, enquanto Gílson engolia soluços "porque se chorares, apanhas mais".
Seu
Joaquim era português. Viera de uma aldeia atrasada de Portugal. Talvez,
a mais atrasada de todas.
Todas as vezes que chegava à sua casa, passava por uma humilhante
revista.
Além
disso, criança tem que aprender a trabalhar cedo. A vida não é
brincadeira. E já fazia duas semanas. O esconderijo era o tronco oco de uma árvore, que ficava próxima à entrada da casa.
Deixava ali a quantia para o cinema. Não podia perder o seriado. Respondia sempre que alguém lhe havia pagado a entrada. Os fregueses pagavam.
Bem
que poderia engolir o que tinha visto no cinema, sem comentar, mas dava
uma vontade de falar...
No
gibi não é tão legal como no cinema.
Precisava fazer economia, porque seu tio era capaz de cismar e não
deixá-lo engraxar mais. A vizinhança vivia criticando seu Joaquim,
dizendo que ele explorava o menino. E se ele não me deixar mais
engraxar?
Seus
colegas gostavam de futebol, não assistiam, porque a entrada era muito
cara. Gílson tinha raiva de ir ao campo da Ferroviária e não poder
entrar. Só conseguia entrar de graça no finalzinho do jogo.
O
pior foi a gozação da molecada.
A
primeira vez ainda conseguiu assistir ao jogo até o final. Depois,
entrava, mas saía logo. Dava preguiça de assistir. Mas o seriado era diferente. Já não se contentava somente com o cinema: lia todos os gibis que lhe caíssem nas mãos. O pior é que as despesas aumentavam. Quando somente assistia ao seriado uma vez por semana ainda dava, mas agora tinha que comprar gibi, pois os colegas já andavam cansados do seu “já leu? Então, me empresta". Não havia dinheiro que chegasse.
O
tio advertia:
Tua
falecida mãe (que Deus a tenha em bom lugar) me responsabilizou a tua
educação, mas tu és uma peste. Hei de fazer de ti um homem honesto, como
meu pai (que Deus o tenha...) me fez a mim, ainda que tenha de acabar
com todas as varas de marmelo do mundo. Foi um Deu nos acuda. O fogo, inicialmente, acanhado, foi crescendo e agigantou-se em labaredas. Parece que encarnava a ira de Gílson contra o pé de marmelo. Ameaçava a casa do vizinho e já dominava a cerca. A vizinhança acorda e começa o corre-corre para apagar o fogo. Ninguém sabia a origem.
O
vizinho, que já tivera umas rusgas com seu Joaquim por causa daquela
cerca, não se conformou e foi ao delegado. Mas, não adiantou nada. O pé de marmelo se refez e parece que ficou mais viçoso ainda.
E
foi com uma vara do mesmo pé de marmelo, que Gílson levou a maior e
também a última surra de sua vida.
A
surra, desta vez, foi mesmo de três dias de cama. E de precisar até
chamar o médico. O médico, impressionado com o estado do menino, ameaçou
o seu Joaquim de denunciá-lo ao Juiz de Direito ou ao Delegado.
Capítulo III
-Você viu! Eu falei prá você que Flash Gordon tinha saído antes da
explosão.
Sente, repentinamente, u' a mão, que o segura pela gola da camisa,
apertando seu pescoço e fazendo aumentar o rasgo de sua camisa bem no
meio das costas, quase a divide em duas.
Me
pisam na grama e me arrebentam as flores! Era o guarda, encarregado de
cuidar do jardim.
Gílson disse uns palavrões, fez caretas ao velho e correu atrás de seus
colegas para ver se recuperava a moral abatida. Capítulo IV
-Aqui estão os sapatos.
Enquanto conversavam. Gílson examinava uma pasta, que estava sobre a mesa.
Prá que o raio do menino quer bola? Prá quebrar vidraças? As crianças de hoje são muito levadas. Comentou seu Joaquim ao obter a verdade. Diariamente, ia buscar seus sapatos para engraxar e não queria cobrar. Mas seu Paulo pagava-lhe e ainda dava uma gorjeta gorda. Alem disso, dava-lhe amostras grátis de remédio: vitaminas com boa, dose de açúcar.
Às vezes, se encontravam no jardim ou na Avenida, seu Paulo perguntava: O porteiro informa que seu Paulo tinha viajado e deixara alguns remédios: "mandou entregar a você”.
Gílson apanhou os remédios e saiu cabisbaixo. Sentiu um vazio no peito e uma sensação de abandono. Responde Gílson como que voltando à rea1idade e pondo os remedias dentro da caixa de engraxar. Saiu correndo para o jardim. No peito, a sensação estranha ainda permanecia. Porém, no entusiasmo do pega-pega, tudo desapareceu.
E vibravam absortos em alegria: você não me pega! Você não me pega! Capítulo V Era sexta-feira. Depois de amanhã, domingo, é dia do seriado.
No
ultimo episódio, os habitantes do planeta Mongo haviam prendido Dale, a
mocinha, e estavam prestes a jogá-la dentro de um tacho de óleo
fervente.
Como se salvarão?
Hoje
ele guardaria dinheiro para garantir a entrada de domingo e também para
comprar amendoim e pipoca. Dirigia-se ao esconderijo, pensando na importância que guardaria: quarenta, cinqüenta ou sessenta cruzeiros. Decidiu-se por cinqüenta. -Ah! Então é aí que escondes o dinheiro que me furtas? Cão sem vergonha. Hoje eu te mato. Era o tio.
Ficara de espreita durante a semana inteira. Bem que desconfiara. Ora
vejam só; esconder dinheiro do próprio tio.
Correu desesperadamente para casa. Entra voando e jacta-se em baixo da
cama. Lembrava-se da ultima surra. O terror disparara-lhe o coração. ]-Pode denunciar pro diabo que os carregue. Respondeu seu Joaquim, porem com outro tom de voz e já com o desejo de surrar o sobrinho bastante abalado.
Com
o Delegado não queria conversa. Naquele dia Gílson não apanhou. Talvez Seu tio estivesse pensando num castigo pior ainda. Conhecia seu tio por experiência e também já sabia entender, pela reação de seu Joaquim, quando fazia coisa de apanhar bastante. E o ter escondido dinheiro Gílson tinha convicção de que era imperdoável. Capítulo VI
No
dia seguinte, Gílson estava deveras triste. Nunca se viu o menino tão
triste. Sua tristeza era contagiante. Ela procedia nem tanto da surra
prometida para hoje, mas muito mais de não poder assistir ao seriado de
amanhã. Não iria saber a resposta para “como se salvarão Flash Gordon e
Dale".
Seu
Joaquim exagerou na sua ameaça, no desejo de obter todo o dinheiro que
Gílson lograsse ganhar. O sol fazia as sombras dos meninos ficarem compridos e magros. Lembrava o pernalta, que andava de perna-de-pau, com uma tabuleta, nas costas fazendo propaganda do circo. Gostava de circo. Fora algumas vezes ao circo. Pulara o muro, certa vez, e o melhor foi que o guarda não o pegou. Mas pegou o Jaime.
Outras vezes, pagara entrada com o dinheiro, que escondia no tronco e
agora não podia esconder mais. Ganhara trezentos e vinte cruzeiros. Faltavam cento e oitenta cruzeiros. Pediu emprestado no 'bar. Negaram. Contou a história. -Deixa de onda moleque. Você já ganhou bastante hoje. Ah! Se seu Paulo estivesse em Assis. Quem sabe? E num átimo já estava dentro do elevador. Tremulamente, bate na porta do apartamento 10.020.
Alguém se aproxima. Parecem os passos de seu Paulo. Perguntou o homem, passando a mão carinhosamente na cabeça de Gílson, o que o fez recordar seu Paulo. O corado, forte e afável olhava o menino com certa voluptuosidade. Não era normal. Era um desequilibrado psico-social. Um tarado ou monstro, como seria tratado pelas manchetes dos jornais.
Porém, visto noutra oportun1ndade, dir-se-ia um "gentleman". É que... Gílson contou a história da surra prometida pelo tio se não conseguisse quinhentos cruzeiros. Preferiu omitir a sua principal aflição: o seriado do domingo: como se salvarão Flash Gordon e Dale?
-Eu
ficarei seu amigo. Eu juro. Engraxarei seus sapatos todos os dias e não
cobrarei nada! Respondeu inocentemente Gílson, vendo nascer uma
esperança.
Mas
percebeu que o homem não brincava e não queria destruir a sua única
esperança. Quer arrumar uma desculpa. Fora muito rude com a criança. Afinal era órfão. Seu sobrinho. Mas para educar é preciso ser duro, senão criança cresce desonesta. Procura-o no jardim. Pergunta na banca de jornal; não viram. Indaga no bar. Informam que entrou no Hotel Vieira Dias.
O
ascensorista lhe complementa a informação. Bate no apartamento numero
10.020. Gílson sentia dores, parecia estar em estado febril: a cabeça girava, a realidade não era palpável.
Tudo
era nevoa. Seu algoz ajudara-o a vestir a roupa e foi abrir a porta.
Seu
Joaquim vê o menino e exclama sem atinar com o que se passa.
A
voz do tio sempre o colocou em estado de aflição. Quer fugir. Sobe numa
cadeira junto à janela e da cadeira à janela. O corpo desce de encontro ao solo. Ouvem-se gritos. Das janelas do prédio, viam-se pessoas dirigirem-se apressadas para perto corpo de Gílson. Mais abaixo, na Avenida Rui Barbosa, onde se discutem os sérios problemas internacionais e se acordam sobre a melhor fórmula para a política cambiária do Brasil, outro engraxate, perguntava aos transeuntes:
-Quer engraxar, moço? E eu fui além: escrevi este conto.
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Egydio Coelho da Silva (foto 1.942 - com 8 anos) Uma explicação desnecessária Este conto, escrevi-o, a mão num caderno em uma só noite. Foi um "brainstorm" (chuva de ideias), semelhante ao que conta Mário de Andrade sobre a criação de seu poema "Pauliceia Desvairada". Escreveu-o à mão, para mais tarde, passar a limpo numa máquina de escrever. Foi o que fiz neste conto.
O pano de fundo é o conceito de utilizar
castigos corporais na educação das crianças.
59 anos depois de ter eu escrito este
conto, o jornal "O Estado de S. Paulo", em 25 de abril de 2021, publica
notícia da morte do menino Henry, de quatro anos de idade, espancado e
torturado pelo padrasto e da menina Ketelen Vitória, de seis anos,
espancada até a morte pela mãe e madrasta. Meus pais usavam sim castigos corporais para educar seus oito filhos.
Mas eram cometidos.
Nada que machucasse.
E dizia: "da próxima vez, você vai levar
uma surra de verdade".
"O João faz muito barulho, mas castiga
pouco".
Na verdade, na época, este era o costume e
aceito por todos.
E dizia: "se precisar, pode lhe dar uns
tapas. Se vier reclamar em casa, vai apanhar dobrado". Nenhum seguiu caminho errado, são trabalhadores e honestos.
E ainda acrescentou: "Se eu tivesse sido
mais rigoroso, você não me faria essa afirmação desrespeitosa".
Na adolescência começa a agir como adulto
e já tem conceito próprio do que é certo ou errado.
Diferente de quando era criança. Se não obedecesse, um tapa na mão ou no bum bum resolvia.
Na educação do meu filho, tive
confirmação, de triste memória, que para a criança o certo e errado, são
os que os pais dizem.
E quando o pegava brincando com água da
torneira, lhe dava uns tapinhas na mão.
por que meu filho?
é que eu estava brincando com água da
torneira. Nunca mais o castiguei por isso. No início de sua adolescência, certa vez, me disse:
"eu era tonto e concordava com todas as
proibições que você fazia".
Não é minha
área, por isso não sei se existe outra forma de educar as crianças. |