Biografia e autobiografia de gente sem importância           Egydio Coelho da Silva  

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Data provável: 1.942

Na Frente de todos: o cão mestiço policial com pastor alemão: nome: Fiel

Na primeira fila sentadas ou em pé, da esquerda para direita: Aparecida Coelho da Silva, Rosa Coelho da Silva, Maria Conceição Figueiredo Coelho da Silva, (na frente) Neide Norberto, em pé atrás da Neide, Conceição Coelho da Silva, Maria Norberto (no colo: Isaura Norberto), Manoel Coelho da Silva Filho

Biografia e autobiografia de gente sem importância           Egydio Coelho da Silva  

Referências do livro autobiografia de gente sem importância... 

1.979- página 34

 

 

  À frente, sentados da esquerda para a direita: Maria Conceição Figueiredo Coelho da Siva e João Coelho da Silva. Entre ambos, Aparecida Coelho da Silva. Em pé, da esquerda para a direita: Adelino, Anita, João Coelho da Silva Filho (João Costela), Deolinda, Rosa, Conceição e Egydio. 

 

Biografia e autobiografia de gente sem importância           Egydio Coelho da Silva

Capítulo I

Narcisismo ou valor histórico

 Resolvi escrever este livro, que conta a história da minha família e, consequentemente, estará inclusa a minha autobiografia. 

Algumas pessoas podem entender que a motivação seja narcisismo e até vaidade. 

E eles talvez tenham um pouco de razão; porque nada melhor do que uma autobiografia para falar bem do próprio autor. 

Por isso há quem diga que as autobiografias só servem para documentar a história de um período de tempo e dar uma visão da saga do autobiografado, em determinada atividade e/ou região. 

E, com certeza, quando o autobiografado é importante, para facilitar a pesquisa dos biógrafos, que colhem detalhes, que, muitas vezes, são impossíveis de se obter em pesquisa.

Infelizmente, a tendência do autobiografado é destacar somente as coisas, que lhe dão valor moral e, consequentemente, “esquece” as atitudes, que podem denegrir sua imagem ao longo de sua vida. 

Procurarei evitar isso, mas com certeza não conseguirei, como nenhum autobiografado conseguiu.

Tenho que agradecer a minha mulher, Nair, e ao meu filho, Paulo Egídio, as sugestões indiretas e os comentários sobre este livro, quando  tive a coragem de contar a eles a minha intenção. 

A Nair não resistiu e afirmou:

-Tanta gente importante, que deveria fazer autobiografia, não faz. E você vai fazer, por que?

Por isso, devo agradecê-la porque ela me forneceu o título do livro, "Biografia e autobiografia de gente sem importância". 

E meu filho, Paulo, achou boa a idéia e comentou:

-Eu gostaria de ter tanto tempo como você, papai, que pode até escrever a própria autobiografia.

Achei inteligente a sua observação e resolvi, por complexo de que estaria perdendo tempo com um livro - que provavelmente não será lido nem por meus familiares - a dedicar apenas 15 minutos por dia, a escrevê-lo. 

Durante mais de uma ano, adotei esse método de escrever diariamente durante os primeiros quinze minutos de trabalho do dia. Mas, infelizmente, nos últimos tempos, nem quinze minutos me foi possível encontrar para dar prosseguimento a este livro.

Por isso agora, decidi que só vou escrevê-lo, quando, em fins de semana ou em feriados prolongados, estiver no litoral ou outro lugar em passeio.

Bem, acho que está na hora de eu deixar de contar a você, leitor, minhas intimidades e parar de praticar a metalinguagem sobre autobiografias e passar a escrever a história de minha família.

 

10/05/97                                     Capítulo II

 

Síntese

Histórias, eu aprendi que a gente começa do começo e termina no fim.

É assim que eu farei. 

Também não terei preocupação com a síntese, ao contrário, serei prolixo, porque isto não é um livro, que eu tencione editar e torná-lo vendável. 

Mesmo que um dia isso venha a ser viável, eu não gostaria de vê-lo publicado, enquanto as pessoas citadas nele, estejam vivas. 

Ele contém muitas intimidades e eu não gostaria de magoar ninguém.

Estes perfis biográficos e autobiografia se destinam, na prática, apenas a meus descendentes, diretos e indiretos, que, eu suponho, gostarão de saber sobre os seus antepassados, como eu leria, com muito prazer, qualquer biografia ou autobiografia, que algum ancestral meu tivesse escrito. 

E também porque entendo que tem valor histórico.

Terá interesse em lê-lo também quem desejar estudar a história regional, no período de tempo de minha vida, das cidades de Botucatu, Assis, Ourinhos, São Paulo (Bixiga) e Monte Verde-MG. 

Poderá também ter interesse quem desejar estudar o jornalismo regional, onde venho atuando há mais de 40 anos. 

A quem queira estudar as dificuldades do futebol varziano em Botucatu, também este livro poderá servir de fonte de pesquisa. 

Fora essas pessoas, somente um ou outro "masoquista" poderá se interessar por sua leitura.  

Capítulo III

Meu avô materno

Meu avô, pai de minha mãe, era português e se chamava Adelino Figueiredo; sei apenas que chegou a Botucatu, vindo de Araraquara, em 1.902. Como chegara à Araraquara e de que região de Portugal viera, não sei e nenhum de meus irmãos sabe. Talvez quem saiba sejam meus primos, José e Antônio, filhos de meu tio José Figueiredo, irmão de minha mãe.

Sobre a vida de meus avós, pais de minha mãe, em Araraquara, pouco sei. Meu avó, materno, e minha avó materna, Rosa de Jesus Figueiredo, estão  enterrados em Botucatu, no jazigo de meu tio José Figueiredo.

No final do Século XIX (1.890), ele tinha um pequeno comércio de secos & molhados em Araraquara, expressão usada na época para designar venda a varejo de bebidas, cereais, etc.

O motivo de sua “fuga” de Araraquara, conforme me contou minha mãe,  foi o desentendimento com um seu irmão, que trabalhava para ele e o teria roubado. O desentendimento foi forte, pois, meu avó teria pego uma faca e posto o irmão a correr. Daí, ele ter-se aborrecido e decidido mudar-se para Botucatu.

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Minha mãe me contava muita coisa de seu pai. Com muita tristeza - e sempre com medo de que seguíssemos o mesmo caminho -  dizia que meu avó bebia muito, isto é, era alcoólatra. 

Ele viveu até cerca de 50 anos de idade e faleceu no início da década de 1.930.

No final da vida, com algum problema mental, em virtude da bebida. Nos delírios alcoólicos, reclamava sempre: "roubaram o meu dinheiro", provavelmente sobre o desentendimento com seu irmão, quando tinha um pequeno comércio em Araraquara.

O alcoolismo o acompanhou a vida inteira. E minha mãe tinha histórias até engraçadas sobre o seu vício de bebida. 

Ela contava, por exemplo, que em Botucatu, meu avó trabalhava como empregado braçal da Estrada de Ferro Sorocabana.

Ele não podia, evidentemente, beber no serviço, porque seu chefe, com certeza, não permitiria. Daí, então, segundo dizia a seus colegas, preferia beber café o dia inteiro, para não se lembrar da bebida. Acontece, porém, que, quando chegava ao fim do expediente, estava completamente bêbado. Seu chefe e seus colegas demoraram a descobrir que o café, que trazia de casa, na verdade, tinha mais da metade de pinga. Servia só para mudar a cor e esconder o verdadeiro conteúdo da garrafa. 

Capítulo IV - Minha avó materna

Da vida de minha avó, Rosa de Jesus Figueiredo, sei muito pouco, mas, com certeza, teve uma vida dura e muito curta. Casada com um alcoólatra e com três filhos para cuidar. Morreu ao dar a luz à minha mãe, em Botucatu, em 31 de dezembro de 1.903, no dia em que chegara de Araraquara.

Minha mãe

Embora não tenha feito pesquisa, sei bastante coisa da sua vida, porque com ela convivi bastante ao longo de minha existência.

Por isso, posso registrar as coisas de que me recordo, alguns depoimentos, que ela e meus irmãos me fizeram, o que dará uma amostra do que foram seus  92 anos e seis meses de vida.

Chamava-se Maria Conceição Jesus de Figueiredo, antes do casamento, e teve vários sobrenomes, nas certidões de nascimento de alguns filhos - ela teve 10 ao todo - consta Maria Conceição Figueiredo Coelho da Silva, em outras, Maria Conceição Coelho da Silva; na minha certidão de nascimento, constou apenas Maria Conceição, sem sobrenome e ela sempre reclamava disso.

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Os cartorários, na época, eram negligentes e incompetentes.

De seus dez filhos, oito estão vivos até hoje; uma, Maria José, morreu aos três meses de idade e outro, Gervásio, nasceu morto.

Ela nasceu, na passagem do ano de 1.902 para 1.903, no dia em que seus pais, meus avós, chegaram a Botucatu, vindo de Araraquara, de carroça. Mas foi registrada somente alguns meses depois.

Como seria uma viagem de Araraquara, de carroça em 1.902? Com a mudança, uma mulher grávida e mais 4 crianças pequenas, que eram seus irmãos, meus tios: João, Gervásio, Francisco e José.

Quantos dias teriam demorado? Qual o caminho que seguiram? Tenho muita  vontade de fazer pesquisa sobre isso, examinando os mapas da época. Provavelmente, ficará somente na vontade, porque, no momento, não disponho de tempo para isso. Assim, cabe a você, leitor, a tarefa de imaginar.

Ela  ficou órfã de mãe ao nascer, pois, minha avó faleceu durante o parto. Portanto, pouco sabia sobre a mãe, apenas o que seu pai e parentes lhe contavam.

Era a mais nova dos cinco irmãos. Meus tios José, Francisco, João Felomeno e Joaquim Gervásio foram adotados pelo português Antonio Costa e sua mulher, Sinhá Júlia.

Minha mãe, até os três anos, permaneceu morando na casa, onde nasceu,  dos compadres de meu avó, Juvenal Pereira e Luzia Pereira.

Aos três anos de idade, numa das visitas rotineiras, que seu pai lhe fazia, ele disse aos compadres que “levaria a menina para dar um passeio”. Na realidade, ele a levou embora e a entregou também para o português Antônio Costa, pois com ele já viviam os outros meus tios, irmãos de minha mãe. 

Antônio Costa era casado com uma negra, filha de escravos, que, se não me engano, livrou-se do cativeiro, em razão da famosa Lei do Ventre Livre. Chamava-se Júlia (Sinhá Júlia, como minha mãe se referia a ela) e tinha mais filhos, mas que eu sei e me lembro é de “dona” Maria, que era filha legítima e tinha a mesma idade de minha mãe.

Minha mãe tinha muita admiração e respeito pelo seu padrasto; citava-o sempre como um homem de bom senso, parece até que os seus conceitos morais e observações filosóficas sobre as pessoas e a vida eram sempre atuais e norteavam a sua conduta. “Como dizia seu Costa...” ou, então, “quem me criou sempre dizia...”

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Não acontecia o mesmo com a madrasta, de quem ela falava pouco, mas de vez em quando, citava a sua condição de preterida, ao longo da infância e adolescência. A madrasta, tendo mais filhos e filhas, os protegia em detrimento dela, seja na distribuição de tarefas de casa, sejam na comida e sobremesa melhores. Esse drama só percebe quem, de certa forma, foi criado na “casa de outros” e não de seus próprios pais.

De qualquer jeito, sempre se mostrou agradecida aos seus pais de criação, por tê-la adotado num momento, em que não tinha para onde ir. 

Meu pai e minha irmã mais velha, Deolinda, eram mais revoltados, pela hipótese de minha mãe ter sido judiada pela madrasta. Minha irmã, por exemplo, cita o fato de que minha mãe era obrigada a passar roupa de toda a família, já aos dez anos de idade e era tão pequena ainda, que precisava subir num banquinho para ter a altura da mesa de passar.

Deolinda conta até um episódio, constrangedor, no seu relacionamento com Sinhá Júlia, quando tinha cerca de cinco anos de idade. Toda vez, que ela juntamente com minha mãe ou outra pessoa visitava Sinhá Júlia, abraçava-a e beijava-a, chamando-a de avó.

Vendo isto uma amiga da família, inadvertidamente, disse a minha irmã Deolinda que não deveria chamar “sinhá” Júlia de avó, porque “ela tinha judiado muito de sua mãe”. E não deu outra, numa próxima visita, Deolinda, quando “Sinhá” Júlia veio abraçá-la, negou-se a aceitar o abraço e disse: “Não vou abraçar a senhora, porque a senhora judiou muito de minha mãe”.

Minha mãe, casou-se aos vinte anos de idade com meu pai, João Coelho da Silva, que, na ocasião, tinha 24 anos. Uma das coisas, que meu pai dizia num sentido protecionista, é que apressou seu casamento com minha mãe, porque “ela era muito judiada”. Aí, nós, os seus filhos, maldosamente, retrucávamos, dizendo que, após casada, tendo oito filhos e vivendo com a sogra, continuou sendo judiada e na “casa dos outros...” Mas minha mãe administrou bem sua vida e criou seus filhos, sempre com bom senso e foi, dentro de suas aspirações, feliz com a vida, que teve.

Ela faleceu em 28 de junho de 1.994, portanto, com 92 anos, logo após o término do jogo do Brasil com a Suécia, pela Copa do Mundo de 94. Eu me lembro bem porque

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Ao terminar o jogo, deitou-se corretamente na cama, para dormir; de repente, teve uma tosse engasgada, sua cabeça pendeu para trás e morreu.

Na velhice, teve qualidade de vida aproveitável até os seus últimos dias. Teve a morte que eu gostaria de vir a ter e que desejo a meus amigos, sem UTI, sem sofrimento e dor duradoura e constante.

Na semana anterior, uma onda de frio atingira S. Paulo e ela sentiu muito este frio, que chegara de repente. Para nós, minhas irmãs e eu, ela já estava se recuperando.

Havia, porém, uma preocupação da família, com o mês de junho. É que ela sempre perguntava, se estava longe o mês de junho.

Ninguém sabia porque, nem tinha idéia sobre a razão dessa pergunta constante, que fazia nos últimos seis meses. Isto ficou claro para todos que ela tinha tido uma premonição de sua morte.  

Meu pai

A história de meu pai é bem diferente da de minha mãe, com exceção de que ambos eram filhos de portugueses.

Meu pai era o segundo de oito irmãos, que eram: Manoel, João, Antônio, José, Maria, Ana, Matilde e Marta. Matematicamente dividido: quatro homens e quatro mulheres.  

Meu avô paterno

Meu avó paterno, chamava-se João Coelho da Silva, nome igual ao de meu pai, e minha avó, Ana Rosa Gonçalves Coelho da Silva. Devem ter nascido na década de 1.880. Não sei exatamente a data, em que meus avós chegaram ao Brasil. Acredito que seria mais ou menos em 1.895.

Sei apenas que a história de amor deles se iniciou no navio, onde se conheceram e o namoro e noivado duraram pouco, casando-se em seguida. Sei que meu avó tinha mais três irmãos, todos homens, oriundos da Ilha da Madeira. Geograficamente africanos, mas culturalmente portugueses.

(14/7/96 ( Monte Verde) das 8:30 às 9:17)

Na Ilha da Madeira, não teria ficado nenhum outro irmão apenas seus pais. Ao que me consta eram quatro irmãos, que vieram para o Brasil: João, Manoel, Aires e Augusto.

Um deles, Manoel Coelho da Silva, ao que parece mais “vivo”, não gostou do Brasil e resolveu emigrar para a Argentina. Mais tarde, também não gostou da Argentina e decidiu emigrar para os Estados Unidos. Como se vê, realmente era o mais “esperto” dos irmãos. Eu nunca tive contacto com esse tio-avô, nem com seus descendentes. Soube apenas há uns 15 anos atrás, que lá, nos Estados Unidos, ele trabalhava no ramo de plásticos.

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Um outro irmão, também meu tio-avô paterno, Aires Coelho da Silva, tinha um descendente, acho que era seu neto, Durval Coelho da Silva, que morava em Santo André. É o quarto dos irmãos, chamava-se Augusto Coelho da Silva e tinha descendentes, morando no bairro da Lapa em S. Paulo.

Meu avó tinha o mesmo nome de meu pai, João Coelho da Silva, (o certo seria meu pai ter sido batizado com o nome de João Coelho da Silva Filho e meu irmão mais velho com o nome de João Coelho da Silva Neto) veio para Jundiaí, juntamente com a minha avó, Ana Rosa Gonçalves (Coelho da Silva), ainda solteiros.

Sei que, mais tarde, casados, resolveram mudar-se para Botucatu, ainda no final do século. O motivo da mudança seria porque meu avó sofria de reumatismo e Jundiaí era, na opinião deles na época, muito frio. Acho que a escolha não foi muito feliz, porque Botucatu, (na linguagem indígena significa “bons ares”) sempre foi uma cidade fria e, naquela época, com certeza mais ainda, pois está localizada a uma altitude aproximada de 800 metros.

Meu avó paterno, inicialmente foi colono, isto é, empregado na lavoura, na Fazenda Velha em Botucatu. Ali aprendeu a lidar com café e, mais tarde, veio para a cidade e foi trabalhar na Estrada de Ferro Sorocabana, também como meu avó materno, de operário braçal em serviço de conservação e implantação de trilhos. O serviço era pesado e duro, tanto que o apelido desses operários, era “tatu de linha”, porque viviam a fazer buraco para implantar dormentes. Era, provavelmente, o serviço mais ruím, o pior remunerado e de menor prestígio na hierarquia da Estrada de Ferro Sorocabana. Para ele e seus familiares, porém, não era assim. Sua admissão na Sorocabana representava mais "status", pois, era um emprego bem melhor do que ser colono de fazenda de café.

Lembro-me de comentários de meu pai, de que meu avó era muito trabalhador e honesto. Meu pai se orgulhava dele por isso e a mesma norma, meu pai fazia questão de seguir e procurava transmitir aos filhos.

Contava, por exemplo, que, na Fazenda Velha, ele desenvolvia tanto o seu serviço, que irritava seus colegas, que tinham que acompanhá-lo, para que o capataz não fizesse comparação e lhes chamasse a atenção.

No entanto, quando trabalhou na Ferrovia, o seu chefe de serviço

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parece que “implicava” com ele, porque se queixava de dores reumáticas. Não convencia seu chefe de que era doença e não má-vontade na execução do serviço.

Ele, como acontecia com quase todos os portugueses, que chegavam ao Brasil, deveria ser bastante econômico e só gastavam dinheiro em coisas imprescindíveis e o restante guardavam. Mas mesmo assim era difícil acumular economia em pouco tempo, que levasse a poder adquirir propriedades. A chácara em Botucatu, onde me criei, foi adquirida com dinheiro de herança, que minha avó recebeu. Era meio alqueire, na Vila Casa Branca. Não sei se era terra nua, ou se já tinha alguma melhoria, quando adquiriu. Ficava na rua ......... n......... As ruas para cima, ................, entre as ruas.................... ainda não existiam. Ficava perto da famosa “Serraria Anônima”, que era uma S/A, cujos maiores acionistas eram os Milanesi. Sei que meu avô chegou a ver preço e tentar comprar mais terras na hoje Vila..... Mas não concluiu o negócio, porque morreu antes, quando tinha aproximadamente 35 anos de idade. E não morreu em Botucatu, mas sim em uma cidade, além de Botucatu, em Itatinga. Soube apenas que minha avó foi avisada de que ele estava passando muito mal e pediam que fosse urgente vê-lo pois poderia até morrer. Sua enfermidade era grave.

Viajou assustada para Itatinga, temendo que ele já houvesse morrido e que estivessem escondendo dela. E não deu outra. Ele já havia falecido e ela chegou em tempo de apenas ver o corpo, antes de ser enterrado no cemitério de Itatinga. 

Contaram os parentes, onde ele se hospedara a última vez, que estava com pressa de voltar a Botucatu. Pedira que o chamassem cedo. Quando bateram na porta, não ouviram resposta nenhuma.

Insistiram várias vezes, mas nada. Aí constataram que havia morrido de enfarto fulminante.

Minha avó providenciou o enterro em Itatinga e não pode avisar aos seus filhos, todos menores ainda, nem a seus parentes e amigos em Botucatu do falecimento do marido. Por isso, quando chegava o trem de passageiro em Botucatu, vindo de Itatinga, todos corriam até beira da linha do trem para verificar se chegavam. No dia seguinte, infelizmente, quando o trem passou próximo à chácara, a uns mil metros antes de chegar à estação, já a viram sozinha no trem, acenando com um lenço preto. Era a indicação de que o marido morrera e já estava viúva.

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Minha avó e meus pais sempre nos transmitiram a informação de que o reumatismo, que o acompanhava há bastante tempo, seria o responsável pela sua morte prematura. Esta doença crônica teria deixado o seu coração fraco. Talvez fosse a interpretação da medicina na época.

Minha avó paterna

Minha avó paterna, Ana Rosa Coelho da Silva, ficou viúva com cerca de 30 anos de idade e sua filha mais nova, Matilde, tinha 3 anos e o mais velho, acho que Manoel, tinha 11 ou doze anos. Sozinha teve que sustentar todos os filhos e sem rendimentos, pois naquele tempo não havia nenhum tipo de pensão, que a viúva recebesse de instituto de previdência. Aliás, nem instituto de previdência existia na época.

É difícil imaginar como procedeu. Suponho que tenha tido algum tipo de ajuda de parente ou amigo. Mas para tudo existe uma explicação.

Em primeiro lugar, ela era muito trabalhadeira e deveria ter boa saúde. A disposição para o trabalho e fibra são, de certa forma, facilmente encontradas nas mães, quando sentem o perigo em que se encontra a sobrevivência de seus filhos. 

A pequena chácara de meio alqueire de terra seria cultivada por ela com muito trabalho.

-"A avó era boa enxada", disse-me recentemente, sem trocadilho e com muita seriedade, meu primo Domingos (filho mais velho de meu tio Manoel). Esta frase saiu-lhe espontaneamente, quando lhe perguntei se se lembrava da avó. Dela disse-me só isso, nada mais disse nem lhe perguntei, mesmo porque o ambiente, em que nos encontrávamos não era propício. Foi no velório de minha sogra em Botucatu.

Além dessa disposição de luta e capacidade de trabalho, houve fatores que facilitaram a vencer na luta para educar os filhos e deixá-los em situação segura.

E o entendimento mais lógico e, provavelmente verdadeiro, é que o Brasil vivia no final do Ciclo do Café. Como se sabe, o café era praticamente o único produto brasileiro de exportação.

Na época, provavelmente entre 1.910 e 1.915, a chácara, de meio alqueire de terra, já estava plantada com café. Era pouca terra e a produção, conseqüentemente também era pequena, portanto, pareceria difícil “uma micro-agricultora” exportar café, mas havia uma fórmula, que funcionava muito bem.

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As médias empresas de beneficiar café, compravam café aos pequenos produtores, beneficiavam-no e o revendiam no mercado interno. E também exportavam café em grão.

Ela, minha avó, vendia a produção a uma dessas máquinas.

Quando menino, em tom de brincadeira, cheguei a ouvir de meus primos, que um desses donos de máquina de beneficiar café - patrício português - "paquerava" minha avó. Por isso, pagava bom preço pelo seu café, “a fim de ajudar a viúva, que tem  oito filhos para criar”.

Não tenho informações se minha avó era bonita, quando jovem; a foto que tenho dela é uma coletiva, aparecem quase todos os parentes, inclusive eu que deveria ter mais ou menos uns cinco anos de idade, portanto, seria de 1.939. Ela deveria estar com mais de 60 anos, na época da foto. Portanto, já era velha. Quando jovem, e enviuvou jovem, provavelmente com cerca de 30 ou 31 anos, deveria ser bonita. Suas filhas eram bonitas. De rosto, eram bonitas.

É certo que as conheci já donas de casa, todas mais para gordas do que para magras, muito embora o conceito de beleza na época era mais favorável às gordas. Além disso, cheias de filhos, portanto, não havia como avaliar a sua beleza.

Porém,  a Matilde, a mais nova de todos os irmãos, era bonita. Dela me lembro bem e também dos comentários de meus irmãos e primos, que eram sempre elogiosos para ela: “A tia Matilde é muito bonita”. E a sua beleza, evidentemente, se salientava das irmãs, porque morava em São Paulo, portanto, não era “caipira” como as outras, que eram do interior. Além disso, ela não tinha filhos, provavelmente porque seu marido, Benedito, não poderia tê-los. Isto evidentemente a deixava com mais tempo para se cuidar de si mesma, enquanto as suas outras irmãs tinham no mínimo quatro filhos cada uma.

 Mas, quanto à beleza de minha avó é difícil afirmar que, quando já viúva, fosse bonita, com tantos problemas e preocupações. Enfim, como uma mulher pode ser atrativa, trabalhando diariamente 18 hora por dia, para cuidar e dar de comer a tantos filhos pequenos?

Se minha avó era bonita ou feia isso não teve a menor importância, a não ser quando conquistou meu avó, na viagem de Portugal para o Brasil. O que teve muita importância foi a sua capacidade de trabalho e, com certeza, alguma organização na

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administração chácara e da economia da família.

P

elo que analiso agora e pelo que me recordo, ela tirava tudo o que podia para a sobrevivência da família da chácara, como feijão, milho, frutas. A chácara era quase inteira plantada de café. Nas “ruas” dos cafeeiros - o espaço que fica entre uma fileira de pé de café e outra - eram plantados milho, feijão, etc. Lembro-me de menino da existência de um mandiocal - separado da plantação de café - onde eu costumava brincar em baixo e, para a imaginação infantil, era um esconderijo perfeito, na minha luta de mocinho contra os bandidos.

Frutas havia bastante, como manga rosa, que era plantada na divisa da chácara, com os vizinhos, para não fazer sombra no meio da chácara e atrapalhar a plantação de café. E havia muitas manqueiras e os vizinhos levavam vantagem também, porque as frutas dos galhos, que ficavam de seu lado, davam aos vizinhos o direito de colhê-las. Na pior das hipóteses, maduras caiam e eram recolhidas por eles. Lembro-me de cáqui, mexerica, abacate e laranja, estas não ficavam na divisa da chácara. E havia, evidentemente, a horta de verduras, como couve, alface, tomate, etc.

Criavam-se porcos; para mim, numa visão de criança, eram bastantes, mas na realidade não poderiam ser muitos, pois se destinavam apenas ao consumo familiar. A gordura - eu me lembro bem - era guardada em tambor e usada para cozinha. Aliás, toda a produção da chácara era para a sobrevivência da família, com exceção do café, que era vendido. Do café, que se consumia, lembro-me apenas de vê-lo moído - depois de beneficiado e torrado por terceiros. Não sei se era de produção própria ou já era comprado beneficiado e torrado. Só sei que era moído em casa.

Como se vê, havia uma “organização” de produção para consumo e para venda do que era produzido nesta pequena chácara de meio alqueire de terra. E, aparentemente, quase que milagrosa, pois, garantiu a sobrevivência da família, os filhos freqüentaram a escola, todos aprenderam a ler e escrever e completaram o curso primário e ainda fez alguma poupança. As economias, que minha avó fazia do dinheiro recebido da venda do café em grão, eram aplicadas na construção de casas dentro da própria chácara. A meta que ela tinha em mente era a de construir uma casa para cada filho. Como ela tinha oito filhos, o

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objetivo a atingir eram oito casas, o que foi conseguido. A medida em que ia construindo casas, as alugava o que aumentava a renda familiar.

O

s filhos, quando crianças, provavelmente já a partir dos oito anos de idade, trabalhavam na chácara, fazendo serviços compatíveis com  a idade. Com certeza, como aconteceu comigo, que desde os oito anos já tinha alguma obrigação a cumprir na chácara.

Isto fortalecia a economia familiar, pois os portugueses, vindos para o Brasil, sempre foram muito econômicos, seja por estarem em terras estranhas, onde a insegurança é muito maior, seja por uma conscientização de que o futuro da família depende realmente de algum “pé de meia” ou patrimônio.

Há uma expressão que a gente usa até hoje, quando se refere ao espírito econômico dos portugueses: “o dinheiro quando entra no seu bolso, não sai nem com ‘habeas corpus’ ”.

E o que tornava viável a existência de uma micro empresa agrícola familiar era a divisão do trabalho entre todos, inclusive os menores.

O ensino, na prática diária de que todos têm obrigação de trabalhar, desde muito cedo, parece-me hoje muito positivo. A freqüência à escola também era coisa sagrada. Meu pai e todos os seus irmãos completaram o curso primário. O que era muito na época.

Felizmente, naquele tempo, não havia os políticos, que se dizem defensores de "direitos humanos", que entendem que ensinar as pessoas a trabalharem desde cedo constitui violentação dos direitos das crianças. Se existissem, com certeza, a nossa família teria sido desagregada e o ciclo de moradores e meninos de rua, que vivemos hoje, teria começado há 80 anos atrás.

Em fim todos trabalhavam. E como trabalhavam. Contava meu pai que, em noite de lua cheia, o trabalho, na lida com a plantação, se estendia até 10 horas da noite. Somente muito trabalho justificaria a sobrevivência da família e até conseguir fazer alguma economia.

Minha avó Ana Rosa Gonçalves Coelho da Silva faleceu, quando eu tinha cerca de dez anos de idade, por volta de 1.944.

Tinha problema com a pressão alta. Já havia sofrido um ligeiro derrame cerebral, que lhe dificultava a movimentação de um dos braços e a fala. Na minha presença, estava sempre alegre e brincava muito comigo. Eu, moleque, evidentemente não lhe dava muita atenção. Mas tudo que precisava, corria pedir a

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avó e a resposta era quase sempre afirmativa.

De sua morte, lembro-me apenas de minha mãe me chamar para despedir da avó, que tinha morrido. A lembrança é muito vaga de a ver na cama imóvel. Só isso, nada mais do que isso. Como diriam os antigos: "Cumpriu sua missão; agora descansou".

MEU PAI

M

eu pai nasceu em 1.900 e morreu em 1.971, no dia 13 de março. Parece-me muito importante, que eu narre o ambiente em que se vivia na chácara e o relacionamento familiar, para que o leitor possa entender a sua vida familiar naquele tempo e no  pequeno espaço da chácara e Botucatu.

Quando minha avó morreu, eu deveria ter cerca de oito a dez anos. Seus filhos, meu pai e meus tios, já estavam todos casados e, e a maior parte, com bom relacionamento familiar, conforme aparecem na foto de página___.  Exceção  se fazia ao meu tio Antonio, que - segundo me lembro de ouvir contar - era rebelde. Teria se desentendido com a minha tia Marta, saiu de casa ainda adolescente; fora morar, então,  com a sua irmã Maria, que já estava casada e residia em São Paulo.

Mais tarde, para completar a tristeza de minha avó e talvez contestar a moral rígida, que imperava na família, resolveu viver com uma mulher descasada. Ela tinha  o “dobro da sua idade”, segundo diziam.

Minha tia Marta, seu marido e filhos, também não aparecem na foto. Ela também teve problemas com o marido, Mário Gouveia, que ostensivamente não se contentava em ter uma só mulher. Por isso, ele, que era farmacêutico ou oficial de farmácia, sempre inventava estabelecer-se fora de Botucatu. E, nessa época, minha tia Marta, com os seus cinco filhos, fora morar com o marido em Itatinga e, provavelmente, tentar impedir que outra tomasse o seu lugar.

Mas a tentativa durou pouco e logo foi obrigada a retornar a Botucatu e morar na chácara, sem o marido, que “só vinha a Botucatu para fazer mais um filho”, como diziam as más línguas.

Meu pai, que era irmão dela,  é que fazia as vezes de pai, “quando ela não podia com a vida dos filhos”.

Na chácara moravam então

 1 - tia Marta, com seus 5 filhos Acácio, Álvaro, Laura, Lurdes e Martinho;

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2 - tia Ana, e seu marido Augusto Delgado, com seus 4 filhos Mário, Antonio, Celeste e Wilson, e

3 - meu pai, com seus 8 filhos, Deolinda, João, Rosa, Anita, Conceição, Adelino, Egydio e Aparecida.

4 - Próximo ao campo da Ferroviária, em Botucatu, mas não na Chácara, morava o tio Manuel com sua mulher Ernestina e seus filhos: Domingos, João, Oswaldo, Manuelito, minhas primas Herotildes, Anita.

5 - Em São Paulo, moravam meus tios: José, Antonio, Maria e Matilde. Não vou citar todos os nomes de meus primos agora, mas se houver interesse, você, leitor, poderá encontrá-los no capítulo próprio deste livro, onde contarei o que me lembro de cada um dos meus tios e primos.

Todos os meus tios e os maridos de minhas tias (que para as crianças são sempre tios legítimos), mesmo os que moravam em S. Paulo, trabalhavam na Estrada de Ferro Sorocabana.

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 exceção eram meu pai, João Coelho da Silva e o marido da tia Marta, Mário Gouveia, que era farmacêutico ou oficial de farmácia.

Minha pai tinha uma profissão, carpinteiro, que lhe dava a liberdade de não trabalhar na Estrada de Ferro Sorocabana. (Carpinteiro é um artífice ou operário especializado, que prepara a madeira para a construção civil, talvez seja hoje, como muitas, uma profissão, que está sendo extinta).

Antes de 1.942, quando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ainda não estava em vigor, o trabalho na Ferrovia era praticamente o único emprego compensador, mas era difícil e árduo, porque os operários eram obrigados a trabalhar muitas horas, até 18 horas por dia, quando não ultrapassava 24 horas. Os cargos principais na locomotiva eram o de maquinista, o “motorista”, o foguista, que alimentava a fornalha, jogando dentro dela a madeira e o graxeiro, que colocava óleo e graxa nas juntas e era também o faxineiro. Eu me lembro de ver o graxeiro - logo que o trem partia do pátio de manobras - com o trem já correndo com bastante velocidade, se segurando nas laterais da máquina, e colocando óleo e graxa nas partes superiores da locomotiva. Alguém me explicou que isto acontecia porque ele, graxeiro, chegava tarde ao serviço e era obrigado a terminar seu serviço com a locomotiva em movimento.

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Q

uem cuidava do resto do trem, era o “chefe do trem” fosse ele de carga ou de passageiro. Quando era de carga, o “chefe do trem” viajava no último vagão, que - me parece - tinha alguma mordomia. E no último vagão, ficava a lanterninha vermelha, evidentemente para evitar que algum outro trem pudesse bater. Daí, até hoje a expressão usada, principalmente em campeonato de futebol, que o time tal é o lanterninha do campeonato, para indicar que ele é o último colocado.

Como o sistema de comunicação e de controle no tráfego dos trens era precário, as viagens duravam muito tempo e havia dificuldade do retorno dos ferroviários às suas casas. E naquele tempo não havia hora extra e o salário era fixo e mensal. O serviço era pesado e cansativo, mas, como disse, era ainda o melhor por ser garantido e ganhar normalmente acima dos outros empregos na lavoura, no comércio e nas poucas indústrias existentes na época em Botucatu.

Meu pai, no final da década de 20 e durante a década de 30, trabalhava de carpinteiro, que era a sua profissão e trabalhava também na chácara, na lida com a lavoura de café e,  numa pequena lavoura de subsistência, lidando com porcos, galinhas, milho, mandioca, verduras, etc. Quando os filhos, já estavam maiores, depois ou antes de irem à escola, também trabalhavam na chácara, juntamente com minha mãe.

Ele tentou trabalhar na Sorocabana, inicialmente de graxeiro, que era o início de carreira até chegar a maquinista. Mas acabou desistindo, porque o regime de trabalho era muito rigoroso e no início de carreira o salário era muito baixo.

Outros colegas dele não tinham opção e eram obrigados a sujeitar-se aos horários e  regime desumanos, que vigoravam na época, mas meu pai não. “Eu era carpinteiro e, muitas vezes, ganhava mais como carpinteiro, do que os que trabalhavam na Sorocabana”, dizia sempre ele, para explicar porque demorara tanto a pleitear trabalho na Ferrovia.

Além disso, havia o trabalho constante na chácara, que ele não podia deixar só para minha avó, minha mãe e, mais tarde, para meus irmãos mais velhos.

Estas histórias eu as sei de ouvir falar. Do que eu me lembro mesmo é de meu pai já trabalhando na Sorocabana e, ao mesmo tempo, fazendo serviço de carpinteiro.

Não sei como, nem com quem aprendeu a profissão de carpinteiro,

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acredito que ele anteriormente teria trabalhado na Serraria dos Milanesi, que era vizinha à chácara.

D

a infância de meu pai, eu não me lembro de ter ouvido alguma história, que fosse digna de registro, muito embora seja fácil imaginar. Morando praticamente na zona rural e com muito pouco contacto com pessoas de outros ambientes, que não fossem sua mãe e seus irmãos, sua infância deve ter sido feliz, pela liberdade de morar em lugar amplo, uma chácara, onde a imaginação infantil inventa brinquedos e travessuras. Além disso é de se supor que vivesse sua época, com mais informações do que apenas um garoto de sítio isolado, pois - aos domingos com certeza - ia à igreja e freqüentava o catecismo, que era uma espécie de escola de religião, que existia junto às igrejas católicas. Também não se pode esquecer que ele completou o curso primário, onde mantinha amizade e contacto com seus coleguinhas de escola.

De qualquer forma, em relação a outras crianças de cidade grande, deve ter sido um caipirinha, como é o personagem “Chico Bento”, de história em quadrinhos.

Botucatu, naquela época, era uma cidade pequena. Além disso, a chácara ficava no fim da cidade. Só uma rua servia a chácara, a Rua Casa Branca. Provavelmente, fora aberta para servir à Serraria dos Milanesi, que era um pouco mais adiante junto à Ferrovia e tinha até uma linha de trem, um pequeno ramal que ia até dentro da Serraria. Servia para descarregar as “toras” (palavra que para nós significava tronco de árvore sem os galhos e preparado para serem serrados).

Quando penso em meu pai criança, adolescente e jovem não consigo esquecer o que me disse um primo dele - e eu não gostei nada na ocasião. Durval Coelho da Silva, filho de meu tio-avô, Aires Coelho da Silva, num encontro casual provavelmente enterro ou casamento de algum parente, falou de seu relacionamento com meu pai. Disse que meu avô fora morar no interior e seu pai preferiu ficar em São Paulo. E, quando ele já era adolescente ou adulto, no contacto com os primos do interior, notou uma diferença muito grande. Os do interior eram “caipiras” e bem caipiras, no modo de falar, no modo de se vestir e nos valores sempre mais conservadores. E meu pai, disse ele, era um caboclo do interior forte e com boa aparência, mas com todas as características de um caboclo, que vivia na zona rural.

Hoje essas diferenças entre as pessoas estão muito menores, seja

 

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pelo maior contacto entre todos, seja pelos meios de comunicação, o que torna quase todas as pessoas mais parecidas.

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s acontecimentos, que marcaram a vida de meu pai na juventude, vêm de quando serviu o Exército. Acostumado à rotina da vida do interior, bem familiar, repentinamente, aos dezenove anos, foi convocado para o período de um ano a servir em quartel na cidade de em São Paulo. Ele demonstrou - pelo que nos contava - no relacionamento com os colegas e com seus superiores imediatos, a ingenuidade e, ao mesmo tempo, a esperteza do caboclo do interior. Ele falava, com orgulho, da sua “técnica” para fugir daqueles exercícios pesados e sadistas, que os sargentos, costumam exigir dos soldados.

Como ele já tinha sofrido uma operação de hérnia, alegava logo que não poderia fazer serviço pesado, nem se submeter a exercício que obrigasse a grandes esforços. Aí então lhe sobrava os serviços mais leves e logo se oferecia a fazer “serviço de rua”.

“Mas se você é caipira de Botucatu, como conhece São Paulo”?, debochou de imediato

o sargento.

Aí ele explicava que vinha muito a São Paulo, à casa de seus tios e estava acostumado a tomar trens, bondes e ônibus. Passou, então, a executar trabalho externo, era um estafeta do Exército. Quando em serviço, não precisava pagar a passagem do bonde, porque portava um passe, que lhe garantia a gratuidade.

E logo percebeu que os cobradores, quando viam soldado fardado, perguntavam: “Tem passe?”.  A que ele respondia que sim, estivesse ou não em serviço.

Assim, quando estava de  folga e andava de bonde, usava sempre a  farda, para não pagar, já que estava sempre “duro”. Minha avó não lhe dava dinheiro extra, nem tinha para dar e o que o Exército pagava, na época, era muito pouco e “não dava nem para o bonde”, para usar uma expressão, que vigorou, durante muito tempo, em S. Paulo e significava muito pouco dinheiro.

Vez por outra, porém, o cobrador desconfia, e dizia: “Posso ver o passe?”

“Pois não, aqui está” e dava ao cobrador o valor trocado da passagem.

“Malandro, hein. Quis me passar prá trás?", retrucava com ar de vitória o cobrador.

 

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que ele respondia, para não ficar com cara de tonto: “Para mim, passe ou dinheiro da passagem quer dizer a mesma coisa”.

Em 1.922 casou-se com minha mãe, Maria Conceição de Jesus Figueiredo. Sua história de amor é simples, como o era a sua vida. Antes de minha mãe, ele chegou a namorar uma moça de nome Teresa Coelho, que não era nossa parente nem distante. Com certeza era “Coelho de outra toca”. Namorar naquele tempo, era mais ou menos assim: primeiro o rapaz gostava da aparência da moça, chegava até trocar olhares com ela, o que não era necessário. Em seguida, procurava o pai da moça e pedia autorização para começar a namorar. Dado o sinal verde, aí começava a se encontrar com ela e namorar no portão de casa. Se dava certo, o próximo passo era o noivado e aí então podia entrar na casa da noiva e noivar, o máximo permitido era segurar na mão da noiva. Beijar nem pensar, pelo menos na presença de pais e irmãos da noiva. A exceção a esta regra evidentemente existia, mas era pecado e proibido e só vinha à tona, quando a moça já estava grávida. O jeito, então, era casar às pressas. Muitas vezes havia até a participação do delegado de polícia, que obrigava o rapaz a assumir suas responsabilidades, senão ia preso. Quando o pai não aparecia, a vergonha da família da moça era muito forte. Não raras vezes era expulsa de casa e o caminho era procurar abrigo em casa de prostituição.

Mas com meu pai e a sua namorada Teresa Coelho às coisas aconteciam tudo nos conformes, de acordo com o costume e a normas estabelecidas. Porém, com ela não deu nada certo, nem nos conformes, nem fora deles. Eles se desentenderam  e ele não mais foi até o portão de sua casa para namorar. Talvez antes de pegar na sua mão e deve ter ficado sem saber se sua mão era grossa ou fina.

O jeito, então,  era “piá outra”, porque sem namorada a vida, já tão rotineira, ficaria muito mais sem graça.

“Sinha” Júlia e Antônio Costa eram comadre e compadre de minha avó, pois tinham batizado o Antônio, irmão de meu pai, e eles se visitavam constantemente. Minha mãe, moça, próximo de completar 20 anos de idade, era enteada de Sinhá Júlia. Logo, nessas visitas, alguns olhares devem ter sido trocados. A posição humilde, educada e até delicada, pois sempre foi magrinha. O fato de ser enteada, destacando-se entre as suas irmãs de criação, que eram mulatas,

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deve ter dado a meu pai a idéia de que poderia vir a ser o seu príncipe encantado, que a salvaria.

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 jovem sempre trabalhando muito, aparentemente humilhada em situação constrangedora, de viver de favor em casa dos outros, enfim, a Borralheira.

Se eles namoraram bastante tempo, se o casamento foi “arrumado” pela minha avó e pelo madrasto de minha mãe o também português,  Antônio Costa, eu não sei e ainda não pesquisei. O importante é que o casamento deu certo.

Casaram-se, “ele com 24 anos e ela com 20 anos”, conforme registra a certidão de casamento, e minha mãe veio morar com meu pai, na casa de minha avó, contrariando o dizer o popular: “quem casa quer casa”. Provavelmente, ela não gostaria de morar com a sogra. Mas não havia alternativa; não só o dinheiro era curto, como também um dos filhos tinha que continuar a cuidar da própria mãe, que era viúva.

E os filhos foram surgindo, primeiro Deolinda em 1.924, depois Anita, em 1.926, João em 1.928, Rosa em 1.930, Conceição em 1.932, Adelino em 1.933, Egydio em 1.934 e Apparecida em 1.936. Houve ainda mais um filho, Francisco, (não pesquisei ainda o ano de seu nascimento) que viveu, me parece, alguns meses e morreu. Aí parou, ou por que se acabaram os óvulos ou por que alguma doença deixou minha mãe infértil.

A responsabilidade, que coube a meu pai, era grande, pois eram muitas bocas a alimentar, além da preocupação de cuidar da minha avó e também alguma preocupação com os sobrinhos, que viviam na chácara, como os filhos de minha tia Marta, cujo marido era proprietário de farmácia em outras cidades, ora em Itatinga, ora em Palmital e ora em outras cidades na alta Sorocabana.

Além de exercer sua profissão de carpinteiro, meu pai era o faz tudo na Chácara. Cuidava do café, da criaçao de porcos e galinhas e ajudava a dirigir as obras das casas, que minha avó ia construindo com o objetivo de deixar uma casa para cada filho. Meu pai fazia também o madeiramento dessas casas, como portas, janelas, etc.

O lazer de meu pai, me parece, se resumia no futebol local, mais do que o da Capital. Lembro-me de meu pai, como torcedor do clube amador Associação Atlética Ferroviária de Botucatu. Tratava-se de um time de futebol, que tinha o apoio e o patrocínio dos diretores locais  da Estrada de Ferro Sorocabana.

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 na década de 30 e 40 era bom o time. Aos melhores jogadores, os dirigentes locais da Ferrovia conseguiam emprego, o que fazia com que bons jogadores viessem a jogar na Ferroviária.

Outra diversão, meu pai não me parece que tivesse. Aos domingos, era missa com a família e assistir ao futebol. Outra mulher, como amante ou mesmo aventura extraconjugal, tenho certeza de que não tinha. A fidelidade era uma das coisas de que se orgulhava, como também de ser honesto e de querer somente o que era dele.

Nós morávamos, na casa velha ou grande, juntamente com minha avó, que preferia morar com minha mãe e com meu pai, do que com outra filha. Poderia ser a Ana ou a Marta, que moravam na chácara, em suas respectivas casas com o marido e filhos. É que minha mãe sempre teve gênio bom, compreensiva e tolerante e administrava bem a convivência com a sogra. Não sei se conviver com minha avó era difícil, eu pessoalmente gostava muito dela, nem a metade do que ela gostava de mim, porque - entre tantos netos - eu tive o privilégio de ser seu preferido. Pouco me lembro disso, mas meus irmãos “reclamam” até hoje desse meu privilégio.

Mas para nós, moleques, as frutas dos vizinhos eram mais gostosas e, talvez, fossem. No vizinho do lado direito (olhando da R. Casa Branca), chácara do Russo, havia uva, parreiras, que, para mim, criança, pareciam abundantes. E o Russo também tinha um tipo de manga diferente da nossa pequena e simples manga rosa. Era a manga “sangue de boi”, este era o nome ou apelido da manga. No vizinho da esquerda, havia goiaba, terreno dos Milanesis, para nós, gente muito rica porque eram donos da “Serraria  

Minha Biografia

Em Botucatu, eu nasci, vivi minha infância e adolescência, ajudei meu irmão, João, a fundar um time de futebol, Esporte Clube Inca, que o prefeito de Botucatu, Jamil Cury, tudo fez para tentar acabar com ele e eu e meu irmão João tudo fizemos para impedir o seu intento.

Aos 17 anos, vim morar em S. Paulo, fiquei aqui somente 1 ano e, em seguida,  voltei para fazer o Tiro de Guerra em Botucatu; após retornei novamente para S. Paulo. Aqui, dei seqüência aos estudos, prestei concursos públicos, namorei firme, fiquei noivo e, aos 28 anos de idade, mudei-me para Assis para assumir o cargo de agente fiscal de rendas, na época auxiliar de fiscal de rendas. 

Em Assis, em 14 de julho de 1.963, fundei um jornal, Voz da Terra.

Em maio de 1.964, mudei-me para Ourinhos, com mulher e filho, onde fiquei durante 3 anos. Ali, em companhia do prof. José Serni e Odayr Alves da Silva, fundamos o jornal O Progresso de Ourinhos, que durou mais ou menos 5 anos.

Em 1.967, voltei com a família, para São Paulo; em 1.976, fundei, com a ajuda dos jornalistas Renato Santana e Marcos Barrero,  o Jornal da Bela Vista, que neste ano de 1.996, completou 20 ano de circulação ininterrupta. 

Mais tarde, seguindo uma tendência que se verifica em vários grupos de jornais de

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airro, passei a editar os jornais: O Higienópolis (ex-Higinews), O Paraíso, O Cerqueira César e A Liberdade.

Em 1.986, fui presidente da Associação dos Jornais de Bairro de S. Paulo-AJORB e, agora, em 11 de junho de 1.996, dez anos depois, voltei a ser eleito novamente presidente da AJORB. Em Monte Verde, fui presidente da Associação Comercial, de 1.979 a 1.986, portanto, durante cerca de sete anos e, agora, em 1.996, voltei a ser seu presidente novamente, deixando o cargo em 2.002.  

Em 1.976 e 1.982, fui candidato a vereador em São Paulo e em 1.986 a deputado estadual. Perdi as três eleições, porque, numa auto-gozação, “fui traído pelo povo”. Ou então, por dois motivos: "as pessoas, que me conheciam, não votavam em mim porque me conheciam e as que não me conheciam não votavam em mim por que não me conheciam".

Brincadeiras à parte, na verdade, perdi as três eleições por um motivo muito simples: eu era candidato de mim mesmo. Não tinha base eleitoral.  

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Referências do livro autobiografia de gente sem importância... 

Índice por assunto e por nome de pessoas citadas:

 

Antônio Figueiredo (primo-materno) -  capítulo III

Araraquara -  capítulo III 

Assis-SP -  capítulo II

Adelino Figueiredo (avô materno) -  capítulo III

Ajorb- Associação dos Jornais de Bairro de S. Paulo -  capítulo II

Barrero - Luís Marcos - capítulo II

Bixiga ou Bela Vista, bairro de S. Paulo -  capítulo II

Botucatu -  capítulo II

Cerqueira César, bairro de S. Paulo -  capítulo II

Esporte Clube Inca - capítulo II

Higienópolis, bairro de S. Paulo -  capítulo II

Jamil Cury -  capítulo II

João Coelho da Silva (avô-paterno) -  capítulo III

João Coelho da Silva Filho (irmão) -  capítulo II

José  Figueiredo (primo -materno) -  capítulo III

José Figueiredo (tio-materno) -  capítulo III

Liberdade, bairro de S. Paulo -  capítulo II -  capítulo II

Monte Verde-MG - capítulo II

Nair de Almeida (esposa) - capítulo I

Odayr Alves da Silva - capítulo II

Ourinhos - capítulo II

Paulo Egídio (filho) - capítulo I

Paraíso, bairro de S. Paulo -  capítulo II

Portugal -  capítulo III

Renato Sant'Ana -  capítulo II

Rosa de Jesus Figueiredo (avó-materna)  -  capítulo IV

São Paulo -  capítulos II

Voz da Terra (jornal de Assis) - capítulo II